Chácara do Alemão

Conforme já previamente analisado, o movimento estudantil foi um dos pilares no que concerne à luta contra a ditadura civil-militar no país. No Estado do Paraná não foi diferente, sendo o ano de 1968 um dos mais marcantes, resultando em uma série de confrontos entre os discentes e as forças da repressão.

A Chácara do Alemão, localizada no bairro Boqueirão, em Curitiba,[1] foi um local que representou de forma incontestável, porém efêmera, a força do movimento estudantil, mesmo na clandestinidade. Nesta localidade, estudantes se reuniram com o intuito de continuar as discussões interrompidas em Ibiúna.

O congresso da UNE na Chácara do Alemão ocorreu 65 dias após o de Ibiúna ser interrompido abruptamente pela repressão e 4 dias após a promulgação do AI-5[2], sendo que a ação policial foi imediata, interrompendo o comício ainda em seus momentos iniciais.

Vitório Sorotiuk havia sido eleito presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Universidade Federal do Paraná em 1968 e participou do congresso em Curitiba. De acordo com seu relato, ao sair da Praça Rui Barbosa com um colega em direção ao evento, já havia percebido que estavam sendo seguidos:

O dia da organização desse congresso, quando eu saí aqui da Praça Rui Barbosa, eu estava com a prisão preventiva decretada, eu disse para quem estava indo comigo, que era o Mauro Goulart, que é falecido já… Eu disse “Mauro, a hora em que nós saímos uma pessoa baixou o jornal, nós estamos sendo vigiados”, né… E chegamos ao local do encontro,[…], eu tinha pedido para um pessoal, eu disse “eu acho que tenho que ir embora, tem que me levar daqui”… estávamos discutindo com a direção de como sair dali, que não… achava que ia cair aquilo ali […] porque eu disse, “não, uma pessoa baixou o jornal aonde eu peguei o ônibus e tudo… isso aqui aberto e todo mundo vindo pra cá, nós vamos ser presos”. Eu estava com outro olhar… estava aguçado porque eu estava com prisão preventiva decretada[3]

É interessante notar que Vitório estava alerta quanto à possibilidade de estar sendo seguido, sendo que um gesto aparentemente corriqueiro, como um indivíduo abaixando um jornal tenha sido o estopim para confirmar suas suspeitas.

Estudantes presos na Chácara do Alemão. Fonte: Diário da Tarde, 18 dez 1968. Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/800074/118875> Acesso em 22 de janeiro de 2018.

O recorte de jornal mostra os estudantes sendo conduzidos com as mãos sob a cabeça por um grande aparato de policiais armados. A fotografia acima, do Diário da Tarde, foi acompanhada de uma reportagem que informava que os órgãos de segurança já sabiam com antecedência da realização do evento:

Em nota oficial distribuída ontem à noite, a delegacia regional do DPF diz que a ação preparatória   do conclave estudantil clandestino contrário à legislação vigorante vinha sendo acompanhada pelos setores de informação e segurança. As autoridades souberam, com antecedência, que Curitiba havia sido escolhida como local propício à instalação dos trabalhos interrompidos em Ibiúna, desenvolvendo-se então intensa atividade que culminou com a ampla rede estendida que colheu de surpresa os estudantes, deixando estupefatos os seus organizadores e todos os elementos – mesmo estranhos ao movimento estudantil – que pretendiam desencadear clima de intranquilidade em todo o país. No local, uma chácara alugada a um elemento de origem alemã ainda não identificado, foi apreendida vasta documentação que já se encontra em poder da Polícia Federal. Entre os documentos foi encontrada toda a planificação de todo o movimento estudantil até o próximo ano além da tese doutrinária sobre a ex-UNE.[5]

No fragmento acima, publicado pelo Diário da Tarde, podemos notar dois elementos interessantes: o fato de a própria reportagem informar que os órgãos de repressão já sabiam antecipadamente da realização do evento em Curitiba, coaduna com o relato de Vitório Sorotiuk; outro fator a ser analisado é a posição do jornal na cobertura do evento, argumentando que os estudantes pretendiam “desencadear um clima de intranquilidade no país”. A notícia do periódico denota certo alinhamento ideológico com as autoridades responsáveis pelas prisões, entretanto, é importante ressaltar que a reportagem é do dia 18 de dezembro, logo após a promulgação do AI-5, portanto, a censura e vigilância já estavam vigentes sobre a imprensa.

Um fragmento do jornal Diário do Paraná, é bastante emblemático:

Estudantes presos na chácara do Alemão (2). In: Diário do Paraná, DEAP, DOPS. Pasta 2313. Cx 260.

Os comentários nas imagens mostram uma posição no mínimo antagônica do Diário do Paraná em relação à manifestação estudantil. Na primeira acima à esquerda, por exemplo, a frase “cabeças baixas, ares de perseguição. Poses para impressionar”, há uma insinuação de que os estudantes estavam dissimulando para parecerem vítimas. Na segunda imagem abaixo à esquerda o periódico comenta em tom de galhofa: “A ida deve ter sido animada. A volta é que foi desagradável”.

Dos estudantes presos no evento, 15 continuaram detidos, enquanto outros foram libertados. Dentre os presos estava Judite Barboza Trindade, estudante do curso de História da UFPR, cuja militância já era exercida desde os tempos de estudante secundarista em sua cidade natal, Maringá. No advento da prisão Judite era caloura de seu curso. Sobre esta circunstância, Judite relata que,

Num primeiro momento eu tive a nítida impressão de que seria imediatamente solta como das vezes anteriores, não percebia a gravidade das circunstâncias. No segundo dia da prisão, já no final do primeiro dia, quando nós estávamos sendo qualificados e ouvidos pela Polícia Federal, pela Polícia Militar é que “caiu a ficha”. Não era a mesma coisa. Desta vez certamente haveria um desdobramento mais rigoroso, né? E foi o que aconteceu. Dos 45, 46 presos, eles soltaram todos e deixaram 15 para serem submetidos ao processo mais rigoroso. No segundo dia esta impressão de que a coisa era mais séria, ela se confirma, porque nós fomos apresentados pela imprensa. […] e na apresentação à imprensa fica muito claro como estávamos sendo tratados: éramos estudantes subversivos ou estudantes em reunião subversiva, o que estava sobejamente proibido pelo ato 5 (AI-5). [6]

O depoimento de Judite se coaduna com o fragmento de jornal que analisamos anteriormente. A matéria redigida no jornal Diário do Paraná mostra de forma irônica o desbaratado congresso na Chácara do Alemão. Interessante ponderar que Judite, a priori, acreditava que sua soltura seria imediata, o que não se confirmou, pois a estudante foi condenada a 4 anos de prisão, tendo sua pena reduzida para um ano de detenção.[7]

No ano de 2016 o jornalista José Carlos Fernandes, da Gazeta do Povo entrevistou Eleonora Fast, então com 87 anos, sobre o comício da UNE de 1968. Suas memórias acerca do evento trazem uma história no mínimo curiosa: seu pai, que havia alugado a chácara para o conclave estudantil, tinha verdadeira ojeriza por tudo que lembrasse comunismo, uma vez que eram descendentes de alemães menonitas que estavam na Ucrânia na época da Revolução Russa e migraram deste país devido às políticas repressivas de Stálin.

Uma vez instalados no bairro Boqueirão, o pai de Eleonora passou a criar gado e vender leite, mas após desentendimentos com fiscais da prefeitura, a produção passou a diminuir. Desta forma, Jacob Neufeld passou a alugar e, mais tarde, arrendar a chácara.

O Congresso dos estudantes nasceu disfarçado de churrasco, por isso Jacob não desconfiava do que se tratava. Após as prisões, o dono da chácara precisou prestar vários depoimentos no quartel do Boqueirão, para esclarecimentos.

A chácara foi loteada no final da década de 1970, sendo, que mais tarde o processo de urbanização da região alterou sua configuração, sendo que sua localização ficava às margens da Rua Maestro Carlos Frank, próxima à Escola Municipal Leonor Castellano.[8]

Imagem de satélite com a localização da antiga “Chácara do Alemão”; 2018. Fonte: google maps. Acesso em 12 mai. 2018.

Na imagem de satélite podemos notar o avançado processo de urbanização sobre a região, desconfigurando o que seria o local em que o Congresso da UNE de reuniu em 1968. A chácara, conforme comentamos e podemos constatar por meio da imagem, não existe mais.


[1]FERNANDES, José Carlos. Memórias esparsas da “Chácara do Alemão”. Gazeta do Povo, 30 jun de 2016. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/jose-carlos-fernandes/memorias-esparsas-da-chacara-do-alemao-a9ovivra757lryxy4fr2zt7i5> Acesso  em 12 mai. 2018.
[2] Idem.
[3] SOROTIUK, Vitório. Depoimentos para a História (Vídeo). 01:17;24 – 01: 18:37.  Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fTGYbNxD4Bg> Acesso em 22 de janeiro de 2018.
[4] Inscrição abaixo da imagem: Numa ação conjugada de organismos de segurança estaduais e federais foi desbaratada ontem a continuação do congresso da ex-UNE. Quarenta e dois estudantes estão presos.
[5]Estudantes presos na Chácara do Alemão. In: Diário da Tarde, 18 dez 1968. Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/800074/118875> Acesso em 22 de janeiro de 2018.
[6] TRINDADE, Judite Barbosa. DHPAZ – Depoimentos para a História (vídeo). 08:32 – 10:15. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=F-TKlkWwm8s> Acesso em 27 de março de 2018.
[7] OLIVEIRA, SAHD, CALCIOLARI, Op. Cit, p. 250.
[8] FERNANDES, José Carlos. Memórias esparsas da “Chácara do Alemão”. Gazeta do Povo, 30 jun de 2016. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/jose-carlos-fernandes/memorias-esparsas-da-chacara-do-alemao-a9ovivra757lryxy4fr2zt7i5> Acesso em 12 mai. 2018